Como o alelo se desenvolveu de forma independente por toda a Europa e em populações pastoralistas da África – dependentes de rebanhos para subsistência –, existem diferentes mutações africanas e apenas uma europeia. Em artigo publicado na revista científica Frontiers in Genetics, os cientistas analisam a frequência com que cada mutação está presente no continente americano.
Essa e outras pesquisas desenvolvidas no Departamento de Genética da UFPR aspiram contrapor o viés eurocêntrico predominante nos estudos biomédicos do mundo todo e, dessa forma, proporcionar melhores diagnósticos para doenças, permitindo tratamentos mais eficientes para todas as populações.


A enzima lactase é formada por enterócitos do intestino delgado, ou seja, é composta por células responsáveis por quebrar determinadas moléculas, como as da lactose, um açúcar não absorvível presente no leite de mamíferos. Esse processo, chamado de hidrólise, transforma a lactose em glicose e galactose, açúcares de fácil absorção pela mucosa intestinal.
Portanto, a persistência da lactase permite que o indivíduo consuma leite na vida adulta, pois tem um organismo capaz de fazer a digestão da lactose corretamente. Já a hipolactasia primária – ou a não persistência da lactase – está relacionada à indigestão e à má absorção da lactose, que pode ocasionar intolerância à lactose ou outros problemas gastrointestinais, como gases e diarreia. A pesquisa da UFPR avaliou exatamente isso, a persistência ou não da lactase.
Lactase é menos frequente em populações negras
A professora Marcia Holsbach Beltrame, orientadora do estudo, explica que a lactase é altamente expressa por recém-nascidos, mas que, com o crescimento, é natural que a enzima deixe de estar presente no organismo, ocasionando a não persistência da lactase.“O normal é que a enzima lactase esteja presente apenas na infância, pois é na fase de amamentação que consumimos leite. Depois, ela para de ser produzida”.
No entanto, essa condição foi modificada pela seleção natural, devido ao hábito de consumir leite, adquirido no decorrer da adaptação humana. “A persistência da lactase é uma característica humana que surgiu junto com o hábito de consumir leite de outros animais na idade adulta em populações humanas ancestrais. Com esse costume, apareceram mutações em diferentes populações humanas que fazem com que essa enzima continue sendo produzida por toda a vida”, destaca Marcia.
Segundo a pesquisadora, as pessoas que tinham essa mutação conseguiam consumir leite de animais sem apresentar os sintomas da intolerância à lactose, o que na época foi uma vantagem enorme na alimentação em populações pastoralistas. “Esse tipo de mutação aumentou de frequência nessas populações, por seleção natural, já que levavam a uma maior chance de sobrevivência e de reprodução dos indivíduos que a portavam. Isso aconteceu de forma independente na África e na Europa, com mutações diferentes”.
Para a realização do estudo, os cientistas da UFPR realizaram sequenciamento genético em brasileiros negros para encontrar a enzima lactase. A pesquisa avaliou os dados genômicos de pessoas negras em todo o continente americano com a parceria do pesquisador Victor Borba, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os resultados alcançados revelam que a frequência da persistência da lactase entre a população negra é baixa.


“Fizemos o sequenciamento da região genômica que controla a expressão da enzima lactase em brasileiros negros e encontramos poucas pessoas com as mutações africanas de persistência da lactase. Isso nos mostra que, provavelmente, não temos muita ancestralidade de populações pastoralistas africanas no Brasil. A mutação europeia de persistência da lactase foi encontrada em uma frequência baixa nos brasileiros negros, sendo que em muitas pessoas nem foi detectada”, relata a pesquisadora.
Os procedimentos e os resultados foram similares na pesquisa de âmbito continental. Para Marcia, esses dados são importantes pois contrastam com as recomendações alimentares vigentes nos países americanos. O trabalho foi realizado a partir de uma junção de diversos dados genômicos de vários grupos de pesquisa e de bancos de dados.
A colaboração da UFPR foi fundamental para realizar essa descrição sobre as Américas, mostrando que a maioria das pessoas no continente não tem mutações de persistência da lactase, portanto podem ser intolerantes à lactose.
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Por Letícia Barbosa Ribeiro
Foto de destaque: cottonbro/Pexels